domingo, 1 de julho de 2012

BUG DO MILÊNIO

- Falta só essa parede caroquenta pra arrumar.

1995. Ano bonito até de se escrever, certinho. Falavam que tínhamos mais cinco anos para sermos felizes antes de Nostradamus findar com o planeta, com Deus e tudo o mais que não conhecíamos. Meus amigos esperavam que os et's se revelassem até lá e pudéssemos trocar cerveja e revista de mulher pelada por um lugarzinho na terceira classe de algum ovni qualquer. No escritório, o pessoal se antevia para o que começava a  ser chamado de bug do milênio. 

Já eu resolvi me casar depois de sete anos de namoro e disse à Lígia repetidas vezes que era agora ou nunca. E ela veio de braços abertos, num vestido de noiva deslumbrante e uma festa regada a muito pró-seco. Trouxe a mala no dia seguinte e a criatividade na bolsa, pensando em espreguiçadeiras na varanda e nos tons das flores que combinariam com as nuances do degradê ocre do sofá e das cortinas. Ela preenchia a minha vida - e como - com essas futilidades de mulher. Por exigência própria, tinha de ser perfeita até entre as perfecionistas, tanto que casamos no dia 19/05/1995. "Coisa dessa juventude" foi a expressão que vovó usou para descrever a data do enlace.

Um mês depois eu estava completamente imerso naquele relacionamento, como numa banheira de espumas coloridas cobrindo milimetricamente o meu corpo. Você nunca sabe o que é ter uma vida a dois até o momento em que passa a morar com alguém, antes disso é tudo um ensaio eterno. A gente fantasia, enfatiza defeitos do outro que você pensa não aturar, mas não adianta. Depois que você casa e o amor existe de fato, a gente acaba superando tudo. Ou quase tudo. O que não pode ser superado, a gente acaba entulhando naquele cômodo obscuro que quase nunca ninguém entra e foca nos lugares em que você se sente mais confortável de estar. Lígia, depois de sete anos de convivência, era uma mulher fácil, com uma impulsividade racional. Daquele tipo de gente que, de início, é difícil de entender e de prever, mas que observando bem você acaba captando alguma lógica em toda aquela loucura. Entendida a lógica, passa a prever atitudes e acaba se apaixonando pela verdade que se revela através delas. O mais gostoso do amor é traçar estratégias usando o coração e não a cabeça. Usando a cabeça a gente acaba se fodendo.

Entrei no jogo dela de levar a sério a numerologia e entender que nada era uma simples coincidência. Eu gostava daquele modo de encarar a vida, achava exótico alguém ter de sair de casa exatamente às 8h03. Ficávamos dentro do carro 3min de olhos fechados fixando nosso pensamento em bons acontecimentos que poderiam se desenrolar naquele dia. Comigo nunca nenhum desses acontecimentos realmente acontecia, mas eu me sentia muito mais positivo e recebia mais sorrisos no trabalho. Quando decidimos ter nosso primeiro filho, Lígia calculou seu período fértil, alinhou as órbitas dos planetas, analisou minuciosamente o meu mapa astral e o dela e elegeu na faculdade algumas aulas optativas de astronomia. Visitou 5 cultos de religiões diferentes e perguntou aos padres, pastores, pais de santo, médiuns e rabinos o que significava "ter um filho". Após meses de planejamento, elegeu um dia em que nosso Messias poderia nascer, um dia cabalístico em que todas as religiões, povos, almas, deuses, energias, cosmos, matérias e forças da natureza se alinhariam ao máximo e trariam a vida e a mágica à junção do meu potente espermatozóide e do seu enigmático óvulo. O ano era 1999 e adivinha a data? 29/12/1999.

O resultado? Lígia engravidou, batizamos o garoto de Nostradamus e, coincidência ou não, ele já previu nossa felicidade antes de nascer. Já prevê seu cocô com um pum bem fedorento, prevê cólicas quando come papinha de abóbora amarela e previu até seu próprio mêsversário de 4 meses aprendendo a bater palmas no dia. Tivemos nosso próprio bug do milênio e, depois dele, o mundo jamais foi o mesmo.O nosso mundo, pelo menos.  

domingo, 18 de março de 2012

DAS INDAGAÇÕES DIÁRIAS

Renata,

Sabe aquela vontade que te dá de viver os momentos exatamente como eles são imaginados na sua cabeça? Pra mim o desafio maior é conseguir materializar as cenas fantásticas que vejo todos os dias através dos meus olhos. Sempre, quando me arrisco a fotografar essas cenas com alguma de minhas três câmaras, a foto sai com um pouco de frustração. Através daquela lente mecânica, tecnológica, última geração, existe uma barreira de frieza, um ângulo um pouco material. Suspeito que a diferença seja uma só, o que falta à lente e sobra aos meus olhos: sentimento. É essa a grande diferença, minha cara.

Você é fotógrafa, só você pode me entender.

Grande beijo,
Cris.

sábado, 3 de março de 2012

DAS TRIPAS CORAÇÃO

Tá, aí vem um pensamento me dizendo que estou assim porque não sei separar o sonho da realidade, que inventei uma vida que só existe na minha cabeça. Ah, na lata? Gosto de uma realidade inventada, como a Clarice. Sonho sim em reencontros intensos após 5 anos, em sentimentos que ultrapassam as barreiras do tempo. Podem me falar que isso é fantasia, mas que existe em algum lugar desse mundo, ah isso existe. Já aconteceu com um amigo e talvez até com a minha avó. E se aconteceu com a minha avó, pode acontecer comigo.

Nesse meio tempo eu vou fluir, entrar no meu rio de sentimentos milhares de vezes, me curar, amadurecer, quebrar o ovo. Dar um pulinho ali no infinito, me reinventar, pintar a parede de azul, adesivar o vidro da janela, sei lá. Esses dias têm sido tão modificadores e me exigido muito do cérebro, da pele, do coração. Tenho revivido minha vida, apenas os momentos que valem a pena. Aqueles que você guarda pra sempre, sabe? Pra resignificar-se a gente precisa desse tempo, precisa entender que o seu lugar no mundo vai até onde seus braços podem alcançar. Seus braços e sua voz. Com a voz você muda alguém, com os braços você mesmo se muda. Preciso de mais braços, de voltar pra academia e malhar bíceps, preciso realizar, tomar as rédeas, sabe? Chega de stand by, quero minha vida inteira pra mim. Me quero todo pra mim. E disso não posso abrir mão.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

SEGUNDA À NOITE

Academia pra quê? Chego em casa, penso em ver "Amanhecer". Vejo. Vejo e choro como uma adolescente apaixonada. Ultimamente até Big Brother tem me emocionado. É que ando muito à flor da pele, sentindo que talvez aquela próxima lágrima seja a última a ser derramada, num medo eterno de ficar com um amargor no coração, daqueles de padre e médico que se acostuma com a dor e alegria alheia. Por isso tenho me permitido rios, lagoas e mares. Banhos terapêuticos no coração, na alma. E, ao fim de cada lágrima, tem me caído bem aquela antiga e velha certeza, embrulhada em papel amarelado: é sempre possível recomeçar. E sem se afogar.

sábado, 24 de dezembro de 2011

PETER PAN VISTO POR RETINAS INFANTIS


Próximo à época de Natal, Gabriel foi acompanhar o pai, médico, até um abrigo de crianças carentes em que prestava atendimento voluntário nos fins de semana. Sem ter com quem deixar o menino, levou-o pela primeira vez à instituição.

Gabriel, que era filho único, se encantou com a ideia de um grupo de crianças que vive numa mesma casa, como se fossem irmãos, e que podem ter a companhia umas das outras por todos os dias e momentos. Lembrou da história do Peter Pan que o pai contou algumas vezes e do seu grupo de "meninos perdidos" que se aventuravam para lutar por tudo que acreditavam. Gabriel nunca entendeu muito bem o porquê da expressão "meninos perdidos", afinal, o que fazia deles um grupo era justamente o fato de terem se encontrado.

Assim que entrou no lugar, de mãos dadas com o pai e ansioso por conhecer a casa dos "meninos encontrados", Gabriel viu um grupo deles (seis, quatro meninos e duas meninas), correndo e se escondendo numa brincadeira que ele não conhecia. Tinham mais ou menos a sua altura e Gabriel deduziu, por isso, que talvez tivessem sete anos de idade, assim como ele. Eles riam uns dos outros e tinham os pés e mãos sujos de barro. Teve a certeza naquele momento que os garotos eram encantados, como os da história do Peter Pan, e que estavam treinando para suas próximas aventuras. Arregalou os olhos e ficou com medo, mas sabia que nunca poderia pertencer àquele grupo que corria, pulava e lutava contra grandes inimigos. Sua vida era tão diferente naquele apartamento apertado, tinha de cumprir horários e responsabilidades: aulas de natação, de inglês, escola, dever de casa. A diversão era um hora e meia de videogame por dia, logo antes do horário de dormir (isso se tivesse terminado já o dever de casa). Não nascera encantado como aqueles meninos descalços.

Na volta para a casa o pai viu Gabriel estranhamente calado e cabisbaixo. Deduziu que obviamente ele estivesse impressionado com a realidade daqueles meninos sem mães e pais, largados no mundo e com histórias de vida tão complicadas de lidar. O pai estava certo, Gabriel estava tão impressionado que pensava que, uma vez que os "meninos perdidos" existem, talvez Peter Pan também pudesse existir e entrar na sua janela para convidá-lo a ser um deles.

*Pensando em falar sobre o Natal, busquei o olhar de uma criança. A pureza de sentimentos que essas pequenas criaturas têm talvez revele que, quando se leva em conta a cronologia, estiveram mais perto de Deus do que de nós, adultos.








sábado, 17 de dezembro de 2011

PONTAPÉ

"O sonho encheu a noite
Extravasou pro meu dia
Encheu minha vida
E é dele que eu vou viver
Porque sonho não morre."

Adélia Prado.


Na minha adolescência, escrever foi fundamental para que eu entendesse o turbilhão de sentimentos embutidos em hormônios que eu até então desconhecia. Foi nessa época que tive a primeira percepção de que cada escritor construía com suas palavras, suas concordâncias e seus pormenores, o seu próprio mundo. Lê-los era como reviver os filmes da minha infância que me faziam ver mundos paralelos, personagens mágicos e acontecimentos fantásticos. A diferença é que, naquele momento, essas realidades começaram a se traduzir em palavras. Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e Rubem Fonseca (meu preferido), me apresentaram nuances infinitas para relacionamentos amorosos, despedidas, ódio, assassinatos, incompreensões e desencontros. Através dos "olhos" desses artistas comecei a moldar o meu próprio mundo fantástico.

A minha busca então partiu para a construção dessa minha visão particular, do meu universo paralelo. Para mostrar a minha própria ótica, escrevi meu primeiro texto e percebi a minha dificuldade de chegar em duas ou três laudas de enredo. Era a minha veia de redação publicitária, sucinta, fragmentada e puxada a uma expressividade excessiva já se fazendo realidade - ponto que fui descobrir só mais tarde, prestes a me inscrever para o vestibular para publicidade. Em 2003, os blogs no Brasil eram uma febre. Criei três deles, um com um grupo de amigos de colégio e outros dois pessoais. Um mundo paralelo só não era suficiente porque em mim muitos alter-egos começaram a querer voz, ansiavam por se mostrarem nas palavras.

Quando a adolescência passou, já por volta dos 18 anos de idade, fui viver esses mundos paralelos de fato e escrever ficou totalmente em segundo plano, adormecido em algum lugar em mim. A válvula de escape então se direcionou para a fotografia, que foi meu hobby de faculdade e hoje em dia é uma das minhas grandes paixões.

Mas como nada é insubstituível porque tudo que existe teima em ter aspectos únicos, por mais imperceptíveis que sejam, percebi que quanto mais multiplicidade de expressões eu detivesse, mais completo seria meu universo paralelo. É impossível abandonar a escrita pela fotografia pois ambas são expressões únicas desse universo. E agora quero todas elas, em grandes dosagens, transbordando em minha vida.

Dado o pontapé inicial para essa multiplicidade de expressões, aqui é o lugar de deixar livre a ótica, o assunto, o meio e qualquer outra categoria. Afinal, tudo é digno de comentário quando não passa desapercebido ao nosso olhar.